16 de jan. de 2017

Vi, mas não queria

O motorista da van sai em disparada. É certo que está atrasado, ou esqueceu a panela no fogo, ou precisa alimentar o filho faminto. Apenas algo assim justificaria tanta imprudência.
“O motorista é desenrolado.”, afirma uma senhora ao telefone próxima a mim. “É jovem. Não é que nem aqueles velho que demora dois ano pra chegar nos canto. Já tô no meio do caminho.”, continua ela, enquanto esforça-se para, sendo ela uma senhora de meia idade, segurar-se com uma mão apenas na van quase desgovernada. E até admiro sua força olímpica: eu mesma, em meus vinte e poucos anos, tenho dificuldade. Ela está mais do que em forma.
Não passamos da catraca, eu e minha companheira de trajeto, porque não era possível segundo as leis da física, dada a quantidade de pessoas que se amontoavam do lado de lá. Seria provável que, uma vez do outro lado e fazendo parte da massa humana, homogênea e gelatinosa, equilibrar-se fosse mais fácil, mas preferimos manter o controle de nossos membros, o que só era possível do lado de cá. Procuro um lugar entre os corpos que identifico apenas por diferenças de cores e estampas, porque em breve este limbo no qual estou ficará também lotado, mas volto meu olhar ao chão sem sucesso. Eis que ouço um grito: “Pois compra uma topique pra tu, macho, pra tu andar sozinho nela.”. Os ânimos do final de tarde de uma segunda-feira não se escondem. Mas a sugestão da passageira não foi respondida, pelo menos, não de maneira audível para nós que estávamos do lado de cá. Torna-se muito fácil cochichar qualquer coisa nos ouvidos frequentadores de topiques lotadas.
O motorista parece divertir-se: ziguezagueia entre a faixa exclusiva para ônibus e a faixa regular, saudando os motoristas particulares lá fora com buzinadas e piscadas de farol. Quanta cordialidade. Começo a seriamente cogitar passar para o fundo espremido e poupar-me de assistir a tal cena tão comovente. Mas nada pode estar tão tedioso e cotidiano que não possa ganhar pitadas de frustração e ódio social: a freada brusca do coletivo chama atenção de todos, e vemos, eu, a senhora ginasta e a parte da frente da massa homogênea, um motociclista que, fosse alguns segundos a mais, teria vindo nos fazer companhia do lado de dentro. Mas o motorista não perde tempo, e puxa o volante para o lado, fazendo todo nós de contrapeso, para desviar do obstáculo móvel. Em segundos, estamos seguindo viagem, novamente na velocidade da luz.
Entretanto, nem todos os obstáculos são contornáveis e, ainda que a contragosto, o motorista precisa parar frente ao sinal vermelho. Alívio para nossos braços. E quem vem ao nosso encontro no cruzamento? O obstáculo móvel que deixamos para trás há alguns minutos, saudando o motorista como se fossem velhos amigos: “Seu filho da p*”. Quanta educação! É de emocionar.
A minha vontade era a de seguir o resto do caminho a pé, mas o tempo que eu levaria para vencer a massa humana, homogênea e gelatinosa até a porta de saída seria o intervalo até a minha parada. Desejei, concentrei-me para, então, abstrair de toda aquela vivacidade e mergulhar em meus próprios pensamentos, mas o quanto mais aquilo me fosse natural, mais correria o risco de reproduzir todos aqueles ensinamentos tortos. Doía-me, mas era preciso manter o nojo por aquelas expressões tão humanas de má-educação e desrespeito. O jeito era seguir, atônita, até o final da viagem. Para minha sorte (será?), o engarrafamento depois da curva estava deliciosamente parado, e os desejos do motorista de transformar o coletivo em uma motocicleta não foram atendidos. Demoramos trinta minutos a mais ali dentro, mas conseguimos manter ao menos a integridade física. Não posso dizer o mesmo da psicológica.

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