16 de jan. de 2017

Laudo


Ausência de ilusões para colorir realidades.
9 nov. 2016

Antídoto para a esperança

Como consertar o que nunca estivera quebrado? Perguntava-se olhando para a noite que crescia janela afora. E por mais que aquilo significasse romantizar algo tão banal, permitia-se, longe de tudo e todos - quiçá dos olhares da própria lembrança -, entregar-se àquela sensação que havia muito a consumia em silêncio. Romantizar, poetizar, chamassem como quisessem, não podia mais era mascarar a dor que trazia por dentro. Era banal, sim! Morre-se de amor todo dia. Por que ela não haveria de morrer também?
Quis ser simples, repetindo para si o quanto tudo era fácil, calando a voz da ansiedade que dominava como ferrugem suas estruturas. Quis ser outra, uma que não morreria ou que, caso morresse, seria apenas por algumas horas e às custas de uma única lágrima silenciosa. Quis ser lago, enquanto trazia em si o mar em ressaca. Brisa, porém, era toda tormenta.

Verdade que já fora tempestade maior. Quando encontrava-se presa nas lembranças, buscando o ponto exato em que tomara a estrada errada, quando estava distante procurando entender aquela assombração que se lhe apresentava com o nome de passado, envergonhava-se do quanto já fora tola (ou mais do que agora, pelo menos). Faltava-lhe força para sangrar de amor, e carne para oferecer aos leões, tanto a oferecera de graça antes. Agora era como se tivesse calma para esperar a nuvem passar, e como se quisesse, com sabedoria - ou ao menos parcimônia -, escolher a corrente certa para seguir, e a batalha cuja vitória parecia mais provável. Mas nas veias ainda lhe corria o sangue em torrentes, e ansiava sentir jorrar-lhe a vida pelas faces. Ainda queria, louca que era pela vida.

O que fazer então? Julgar-se por temer o que não ainda conhecia? Porque não há livros ou filmes suficientes para indicar o caminho pelo terreno incerto que é o amor.

Parecia, afinal, não haver antídoto contra a esperança.

Vi, mas não queria

O motorista da van sai em disparada. É certo que está atrasado, ou esqueceu a panela no fogo, ou precisa alimentar o filho faminto. Apenas algo assim justificaria tanta imprudência.
“O motorista é desenrolado.”, afirma uma senhora ao telefone próxima a mim. “É jovem. Não é que nem aqueles velho que demora dois ano pra chegar nos canto. Já tô no meio do caminho.”, continua ela, enquanto esforça-se para, sendo ela uma senhora de meia idade, segurar-se com uma mão apenas na van quase desgovernada. E até admiro sua força olímpica: eu mesma, em meus vinte e poucos anos, tenho dificuldade. Ela está mais do que em forma.
Não passamos da catraca, eu e minha companheira de trajeto, porque não era possível segundo as leis da física, dada a quantidade de pessoas que se amontoavam do lado de lá. Seria provável que, uma vez do outro lado e fazendo parte da massa humana, homogênea e gelatinosa, equilibrar-se fosse mais fácil, mas preferimos manter o controle de nossos membros, o que só era possível do lado de cá. Procuro um lugar entre os corpos que identifico apenas por diferenças de cores e estampas, porque em breve este limbo no qual estou ficará também lotado, mas volto meu olhar ao chão sem sucesso. Eis que ouço um grito: “Pois compra uma topique pra tu, macho, pra tu andar sozinho nela.”. Os ânimos do final de tarde de uma segunda-feira não se escondem. Mas a sugestão da passageira não foi respondida, pelo menos, não de maneira audível para nós que estávamos do lado de cá. Torna-se muito fácil cochichar qualquer coisa nos ouvidos frequentadores de topiques lotadas.
O motorista parece divertir-se: ziguezagueia entre a faixa exclusiva para ônibus e a faixa regular, saudando os motoristas particulares lá fora com buzinadas e piscadas de farol. Quanta cordialidade. Começo a seriamente cogitar passar para o fundo espremido e poupar-me de assistir a tal cena tão comovente. Mas nada pode estar tão tedioso e cotidiano que não possa ganhar pitadas de frustração e ódio social: a freada brusca do coletivo chama atenção de todos, e vemos, eu, a senhora ginasta e a parte da frente da massa homogênea, um motociclista que, fosse alguns segundos a mais, teria vindo nos fazer companhia do lado de dentro. Mas o motorista não perde tempo, e puxa o volante para o lado, fazendo todo nós de contrapeso, para desviar do obstáculo móvel. Em segundos, estamos seguindo viagem, novamente na velocidade da luz.
Entretanto, nem todos os obstáculos são contornáveis e, ainda que a contragosto, o motorista precisa parar frente ao sinal vermelho. Alívio para nossos braços. E quem vem ao nosso encontro no cruzamento? O obstáculo móvel que deixamos para trás há alguns minutos, saudando o motorista como se fossem velhos amigos: “Seu filho da p*”. Quanta educação! É de emocionar.
A minha vontade era a de seguir o resto do caminho a pé, mas o tempo que eu levaria para vencer a massa humana, homogênea e gelatinosa até a porta de saída seria o intervalo até a minha parada. Desejei, concentrei-me para, então, abstrair de toda aquela vivacidade e mergulhar em meus próprios pensamentos, mas o quanto mais aquilo me fosse natural, mais correria o risco de reproduzir todos aqueles ensinamentos tortos. Doía-me, mas era preciso manter o nojo por aquelas expressões tão humanas de má-educação e desrespeito. O jeito era seguir, atônita, até o final da viagem. Para minha sorte (será?), o engarrafamento depois da curva estava deliciosamente parado, e os desejos do motorista de transformar o coletivo em uma motocicleta não foram atendidos. Demoramos trinta minutos a mais ali dentro, mas conseguimos manter ao menos a integridade física. Não posso dizer o mesmo da psicológica.

Cartas a uma jovem

“Amarei para sempre?”, você me perguntaria, mas não gostaria da resposta: "Você não é mais tão nova para acreditar que se ama para sempre.]'

“Mas não posso deixar de acreditar!”, você responderia, e então seria eu a tirar uma lição: “Agarre-se a isso. Não deixe que lhe digam o contrário.”. Então, percebendo meu semblante de melancolia, você questionaria: “Você já sofreu?”, ao que minha resposta mais uma vez não seria do seu agrado: “Talvez ainda não tudo o que preciso.”; “Por que alguém precisaria sofrer?”, seu olhar questionador não ignoraria essa. Porém, ainda que eu tivesse essa resposta, não lha poderia dar. Nesse momento, eu me calaria.

Incomodada com o silêncio, pois lembro que aprendemos a valorizá-lo anos mais tarde, você tornaria a falar de amor: “E a quem confia seu coração agora?”. Dessa vez, você não compreenderia minha demora em responder, nem entenderia quando eu explicasse que meu coração não está mais preso a outro. “Meu coração está confiado a mim mesma”, eu lhe diria, “e essa é a maior responsabilidade que já assumi.”. É provável que tal afirmação fosse deveras assustadora e inquietante para você, e precisaria digeri-la lentamente. O silêncio se faria presente mais uma vez, para meu agrado, enquanto mil outras perguntas lhe tirariam o sossego.

“E de quem você cuida?”, voltaria a me perguntar, incrédula de tudo o que lhe expusera antecipadamente. E mais uma vez era provável que me julgasse louca me ouvindo dizer: “De mim mesma.”. Poderia ajudá-la a compreender, discorrendo com precisão sobre por que as pessoas não dependem umas das outras e que o amor vem de dentro e não de fora. Mas lembro que, à essa idade, esses sentimentos já despontavam e afligiam. Julgo que os alcançaria sozinha.

A bem da verdade, haveria pouco que eu pudesse lhe ensinar. Talvez a ouvir mais sua própria mente e a confiar mais em seus instintos. O resto, você aprenderia, quiçá, melhor e mais rápido do que eu. Não me arrependeria de dedicar a você algumas horas todos os dias, mas você, inquieta se bem me lembro, não teria paciência para as minhas sobriedades. Não seríamos boas amiga, você e eu. Seríamos, no melhor dos casos, colegas de trabalho que estão unidas pela mesma causa, mas que seguem por caminhos distintos. Nossos objetivos são outros, e, vale ressaltar, você ainda os chama de sonhos. Mas bem que gostaria de poder olhar nos seus olhos e sentir de novo aquela chama que um dia me consumiu e que, a você, esperamos, consuma até o fim dos dias. E, num rompante de curiosidade, na crença de que olhar para trás me ensinaria sobre o presente, me permitiria perguntar: “O que te arde?”, para, desanimada e desesperançosa, sabendo-me preguiçosa para esse tipo de empreitada, ouvir sua voz, forte, dizer “Tudo!”.

Faminta

Digo-lhe, amigo, nada naquela mulher anunciava seus desencantos. E questiono-me se é essa a correta palavra, visto que estou aqui, partida, mas é ainda por ela que tenho amores. Olho-me no espelho e não me reconheço: no peito falta um pedaço. Mas na mesma intensidade em que dói a alma, regozija-se o sorriso por ter me deixado perder no prazer que é aquela mulher. Por isso, não me forço a dizer que me arrependo. Antes, sinto-me insana e grata.

Deixei-me enroscar em suas mentiras tanto quanto em seus cabelos, deixei-me levar por sua voz, sensual, a cada vez que seus dedos me tomavam. Fechei os olhos e entreguei-me como caça, sem me importar que ela fosse predadora. Agora, não lhe posso ser injusta. Ela tomou de mim tudo aquilo que lhe entreguei. Tomou por direito, tomou o que era dela, e deixou-me aqui quebrada e saciada. Seriam fraturas o mesmo que prazer? Saciar-se é entregar-se assim, por inteiro e voltar pela metade?

Loba! Tigresa!

Enganou-me tanto quanto eu permiti. Como poderia querer que não o tivesse? Fui tola, idiota até, em achar que ela valorizaria o que recebeu sem perdas. Porque creio, amigo, que no amor todos têm de perder um pouco, do contrário, é apenas mais um jogo de poder. É política ou xadrez. Mas ninguém conhece todas as cartas da mesa, não é mesmo? E eu caí no perfeito blefe, entregando sem nada receber em troca.

Sim, eu rio. Faço piada com a minha própria desventura antes o possam os outros fazer. Nos dias que seguem, estarei derrotada, destruída. Quero o consolo de poder ao menos sorrir de meu próprio engano.

Amor! Como pude acreditar? Brilhavam-me os olhos enquanto ela pisoteava meu peito com elegância, devorava-me o coração em pequenas garfadas. Em ardentes noites infindáveis, fechei os olhos enquanto ela os manteve abertos. Ela me conhecia, amigo. Quiçá, muito mais do que conheço a mim mesma. Ela conheceu minhas fraquezas e me levou à falência completa da razão. Ela me teve. Me domou. Dominou. E quase me extinguiu.

Agora? O que me resta é morrer de amor, buscar resiliência em alguma esquina pouco frequentada, reconstruir o restante deste corpo fraco, desta mente perdida. Mas vou sim com um sorriso no rosto, amigo. Afinal, ainda ficará a cicatriz para lembrar que com ela, um dia, eu estive.